O CÉU DE MUITAS CORES – Reflexões sobre o filme “Vermelho como o Céu”

Sábado assisti “Vermelho como o céu”, do cineasta italiano Cristiano Bortone. O filme é de tal beleza, que nos emociona e nos dá a oportunidade de colocar o choro em dia. Para mim o cinema é um espaço terapêutico. Por isso sempre recomendo filmes específicos para ajudar na elaboração de alguns conteúdos que estão sendo trabalhados em terapia. É como se fosse um remédio, já que, não sendo médica, não os prescrevo. Dessa forma, por exemplo, para “as mulheres que amam demais”, eu receitaria “O Passado”. Não julguem, os mais acadêmicos, que seria uma terapia de pouco embasamento. No psicodrama, uma das técnicas mais eficazes é o “espelho”. Na dramatização das cenas, olhar-se “de fora”, com o “eu observador”, e isso tem um efeito catalisador: é um momento de importantes insights e percepções sobre si mesmo.

A película conta a história de Mirco Mencacci, que, desde criança, adorava cinema. Mas aos dez anos um acidente tira sua visão e, para dar continuidade à sua educação, seus pais foram obrigados a encaminhá-lo para uma instituição especializada na educação de portadores de deficiência visual. Naquele tempo eram chamados de “CEGOS”. Mas o filme nos mostra que cegos são alguns dos personagens retratados. Apesar de a história ter se passado na década de 70, e os acontecimentos retratados no filme terem contribuído para a mudança na forma de conduzir a educação de portadores de necessidades especiais, ainda nos entristece presenciar atitudes desta natureza: a discriminação da diferença do outro e a auto discriminação por ser diferente. Felizmente, na história de Mirco Mencacci existiu um educador sensível e consciente que assumiu corajosamente os riscos de enfrentar a estrutura vigente, dando oportunidade para as crianças daquela escola desenvolverem plenamente seus potenciais. Mirco Mencacci, adulto, tornou-se músico, compositor e um reconhecido editor de som do cinema italiano.

O filme é rico em personagens interessantes, do ponto de vista de análises do comportamento humano. Por isso, no meu “bulário”, ele teria diversas indicações, como, por exemplo: segurança doméstica, rigidez de pensamento, preconceitos, educação de filhos, desenvolvimento do próprio potencial, desenvolvimento da sensibilidade, trabalho em equipe, resistência a mudanças, auto-estima, a força do coletivo etc. Hoje desejo ressaltar o aspecto da permissão ao desenvolvimento do potencial.

O diretor da escola especializada para portadores de deficiência visual, ao receber Mirco como aluno da escola, falava orgulhosamente da profissionalização oferecida pela escola àqueles meninos “cegos”. Orgulhava-se da possibilidade de fazê-los excelentes telefonistas e tecelões. Essa era a visão limitada daquele diretor, igualmente portador de deficiência visual.

Observando a cena, nossa primeira reação é criticá-lo pela visão limitada. A clientela daquela escola teria, em nossa opinião, muitas outras possibilidades de inserção no mercado de trabalho, como hoje acontece, e a própria história de Mirco Mencacci comprovou.

Mas, trazendo para a nossa realidade: também não fazemos assim com nossos filhos? Em Brasília, principalmente, como existem inúmeras oportunidades de inserção no serviço público, é atitude comum aos pais direcionarem a carreira profissional dos filhos para algum concurso público. Não importa qual: “o importante é passar em concurso”. Entristeço-me com essa tendência. As insatisfações e as doenças geradas pelo stress de trabalhar naquilo para o que não se tem vocação acabam desaguando na clínica psicológica.

Considero nobre a vocação de colocar-se a serviço da sociedade, trabalhando no serviço público. Mas é importante que exista consciência do valor do trabalho e do diferencial que ele acrescenta à sociedade. O problema não é o Serviço Público, a questão é “por que estou no Serviço Público?”, “identifico-me com a atividade que exerço?”.

Há, também, aqueles que preferem a segurança de uma colocação no Serviço Público, visando garantir certa segurança financeira para dedicar-se a outro tipo de realização, seja artística, filantrópica, ou mesmo durante o tempo que se preparam para alçar vôo em profissões que exigem maior investimento em tempo, estudo e finanças. Essa atitude é compreensível, realista e saudável, já que garante a realização da vocação.

A psicologia do trabalho há muito tem estudado a relação Trabalho e Saúde Mental. Dejours¹, pesquisador francês, estudou o prejuízo do trabalho taylorizado na saúde bio-psico-social. No Brasil, pesquisadores também se dedicam ao assunto. Codo² traz a noção de “trabalho vazio”, referindo-se ao trabalho dos bancários, pois não existe a percepção do resultado de seu trabalho.

Lembro-me da grande lição que me ensinou meu filho, hoje adulto e profissional realizado, quando criança. Ele desejava ser cientista. Era década de 80 e vivíamos a realidade de amigos que abandonavam a pesquisa científica, após longo investimento acadêmico, por falta de investimentos governamentais nessa área. Cuidadosa e preocupada com o seu futuro, expliquei-lhe que não era uma área muito valorizada no Brasil, o que poderia acarretar sacrifícios financeiros, ao que ele respondeu-me: “quem disse que precisa ser no Brasil?”. Não cabe aos pais determinarem o que seja, onde seja e como seja. Ouvir, perceber, ajudar o jovem a descobrir e desenvolver sua vocação, é diferente de direcionar a partir da projeção de nossos próprios desejos, medos e frustrações.

O diretor da Escola de Mirco Mencacci subestimava o potencial daqueles meninos, restringindo-os à apenas sua limitada visão, influenciada pelo seu próprio autopreconceito. Mirco lutou e provou que o potencial dele e de todas as pessoas é inesgotável. Mas é preciso acreditar e dar espaço para que ele se realize.

Se perguntarmos qual a cor do céu, a maioria das pessoas vai responder que é azul. Para Mirco Mencacci, o céu era de várias cores, inclusive vermelho, ao pôr-do-sol.




[1] DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho. Cortez, 2003.

[2] CODO, Wanderley/JACQUES, Maria da Graça Correa. Saúde Mental

Comentários

  1. Olá!
    Assisti também ao filme e o achei fantástico. Gostei do que escreveu, pois me mostrou novas visões.
    parabéns. obrigado!

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