AS ESQUINAS DE BRASÍLIA



Estou lendo PARA NÃO ESQUECER, livro de crônicas da Clarice Lispector. São aquelas crônicas de "fundo de gaveta". Aqueles escritos e rabiscos que se escreve para não esquecer a idéia que vem na cabeça, na hora e num lugar qualquer onde se está. Pode ser no guardanapo do bar, ou no caderno, durante uma aula enfadonha. .

Mas o fato é que escritor que é escritor não pára nunca de escrever. As idéias surgem como olhos d'água, daqueles que a gente tem muito em Brasília, que não pedem licença para escolher o lugar onde querem nascer. E aí vão nascendo e, de um pequeno filete que brota na terra, acabam virando um córrego, que se transforma em rio e vai para o mar.

Eu me lembro bem de quando eu era criança, logo no início de Brasília. Todos os parentes queriam conhecer a Nova Capital. O ponto turístico obrigatório era o Catetinho, primeira morada aqui de JK. Lá tinha um olho d'agua. Foi lá que aprendi o que era um olho d'água. Outro dia fui lá. Não tem mais olho d'água. No lugar tem um laguinho de onde nasce um córrego, que eu acho que vira um rio que corre para o mar. Escrever também é assim: como Brasília, que surgiu do nada. Como o olho d'agua que brota e fica de um tamanho que não dá mais para medir, de tão grande que se faz.

Clarice dedicou duas crônicas a Brasília. Uma quando veio pela primeira vez: era 1962. Brasília tinha então dois anos, mal dava os primeiros passos e ainda usava fraldas que lhe dificultavam o andar. Clarice, soberana, descreve exatamente o que eu sentia em Brasília em 62. Eu já estava aqui. Cheguei naquele ano. Levamos três dias para chegar aqui; viemos do Rio, de Sinca Chambord. Brasília parecia mesmo do jeito que Clarice viu. O centro - ela não falou disso, porque talvez não sabia, mas eu falo porque sei - era a Rua da Igrejinha, onde a gente ia às Casas Pernambucanas comprar tecido para fazer o uniforme da escola e à loja de calçados que tinha ao lado, para comprar o Vulcabrás.

Clarice voltou a Brasília após doze anos. Pelas minhas contas, em 74. E, novamente falou tudo o que a gente sentia e lembra daquela época também.Todo mundo então reclamava que aqui em Brasília não tinha esquina. Hoje tem. Falavam que Brasília não tinha alma. Hoje tem.

Brasília não tem esquinas como as das outras cidades comuns, no cruzamento de duas ruas. Brasília tem esquinas na interseção de rua com jardim. Brasília tem esquina no cruzamento das gentes, que saem do trabalho e vão direto se encontrar. Brasília tem esquina nos cinemas: é a cidade que mais tem salas. Brasília tem esquina nos shoppings, onde a gente sempre encontra alguém conhecido e senta à praça de alimentação pra conversar. Brasília tem esquina nos clubes, à beira do lago. Brasília tem esquina nas casas onde sempre tem fumaça de churrasco. Brasília tem esquina no “churrasquinho de gato”. Brasília tem esquina onde a gente come pedaços de pizza em pé. Brasília tem esquina no Parque da Cidade e no Pontão.

Brasília tem esquina, sim. Brasília tem esquina, porque esquina não se faz de ruas que se encontram. Esquina se faz de GENTE QUE SE ENCONTRA. Brasília tem esquina sim! Quem disse que não tem?

Fotos de Brasília do site:

http://www.geocities.com/TheTropics/3416/tabfotos.htm





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