CORA CORALINA, UMA MULHER QUE TRAIU A TRADIÇÃO


Escrevo estas linhas, em minha visita à cidade de Goiás, a cidade de Cora Coralina.

Aninha, seu nome de família, nasceu no século XIX, numa casa à beira do Rio Vermelho. Desde menina, escrevia. Cursou apenas três anos da escola primária, e muitos anos na escola da vida.

Ana, como todas as mulheres daquele tempo de antigamente, não escolhia muito se haveria ou não de casar. Era o costume seguir a vontade dos pais. No caso dela, que perdeu o pai quando  ainda era bebê, não sei como foi. Talvez o fato possa  ter sido bom para que ela fosse o que foi.

Ela escreve que não se achava bonita. Mas até que, lá pelos seus vinte anos, foi viver em São Paulo, com um advogado que, por ser separado, não podia se casar. Só se casaram bem mais tarde, quando ele ficou viúvo e já tinham alguns filhos.

Ana, que já gostava de ler e escrever, saiu de sua terra, traiu suas tradições. Onde já se viu uma moça daquele tempo e daquela terra, ir morar com um homem sem ter se casado...

Em São Paulo, foi guerreira, participou de movimentos... isso ninguém  diz. Antes de vir até aqui conhecer Cora Coralina, achava que ela era uma mulher da terra, simples, de chinelo no pé e avental, que vivia só para os seus doces e, por uma inspiração divina, escrevia seus versos...

Nada disso, Cora lia muitos livros e incentivava a ler.“O melhor roteiro é sempre ler e assimilar o que se lê. Ler para aprender, procurar vencer. Ninguém escreve bem sem ler muito e assimilar ao máximo. Então eu digo: a gente deve ler, reler, transler. Ser dono dele. Não precisa abrir o livro no começo. Abre ao acaso e só fecha quando cansou, quando já não tem mais tempo. Ponha sempre perto de sua cama ao alcance de suas mãos, ao alcance de seu tempo.” (Cora Coralina)

Ana achou que o seu nome era muito comprido e muito comum.” Existem muitas Anas”. Escolheu um nome para si. Um nome  diferente de seu nome de batismo. Um nome que não levava o seu nome de família. Um nome que rima e tem ritmo, um nome que soa como poesia: Cora Coralina!

Em São Paulo ficou viúva. Com tanto filho para criar, Cora foi à luta. Mudou-se para Penápolis e depois Andradina, no interior de São Paulo. Isso eu não sabia e ninguém me contou... ela esteve por lá, na minha terra paulista, quando eu ainda era bebê. Teve comércio, comprou umas terras. Foi candidata a vereadora. Êta!!! Que mulher forte! Que mulher de fibra, que sabia o que queria! Nesses anos  todos, escrevia seus artigos e poesias, enviava para os jornais.

Lá pelas tantas de sua vida, ela, que traiu o seu nome e sua tradição, sentiu saudades do seu tempo de menina. Lembrou da casa na beira do rio, lembrou de sua gente, de sua tradição. E foi aí que voltou. A casa da família já estava velha, seu teto quase caia, suas paredes ruíam.

Depois da reforma  da sua casa interior, ela reformou a casa de tijolos. Ela voltou a morar na casa onde nascera.

Muitas mulheres seguem os padrões estabelecidos pela família, pela sociedade. São obedientes ao que esperam de si. São obedientes às expectativas da família, do marido, dos filhos. São mulheres que não traem os desejos e expectativas do outro. Mas traem os seus próprios desejos. São traidoras de sua própria alma, de sua vocação, de seu mais íntimo ser.

Cora Coralina, prefiro chamá-la como ela se batizou, saiu de sua casa, de sua terra, de sua gente. Precisou trair a tradição Precisou trair sua família! Cora Coralina pode ter traído a todos, mas não traiu a si mesma!

Só depois de se encontrar, é que pôde resgatar a sua tradição. Depois de ter traído a tradição, de ter tomado distância dos hábitos e costumes de uma terra em que mulher não podia ser nada além de ser esposa, dona de casa e mãe,  só então podia voltar e resgatar a sua tradição!

A  tradição de mulher que gostava de fazer doces.  Da mulher que gostava de fazer as coisas de mulher.
Da mulher simples do interior!

Da mulher que fazia doces fazendo poesia e fazia poesia que adoçava o coração!

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